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Afinal, as calorias não nutricionais devem ser contabilizadas? 

No ambiente hospitalar, além das soluções de nutrição enteral (NE) ou parenteral (NP), os pacientes podem receber ingestão energética de fontes alternativas, as chamadas “calorias não nutricionais” (1).

Muitas emulsões intravenosas e alguns medicamentos fornecem algumas dessas calorias. No entanto, por mais insignificantes que possam parecer, sua contabilização é muito importante. Saiba mais adiante.

Calorias não nutricionais devem ser contabilizadas?

Sim. As calorias não nutricionais devem ser não apenas contabilizadas, como também descontadas da necessidade calórica estabelecida.

Sem isso, o paciente corre o risco de sofrer o chamado overfeeding, termo que se refere ao excesso de oferta energética. A literatura atual considera que há overfeeding quando a ingestão de calorias ultrapassa os 110% da demanda energética calculada (2).

Algumas prováveis consequências de não contabilizar as CNNs incluem (1, 3, 4, 5):

  • Distúrbios metabólicos, como hipertrigliceridemia e hiperglicemia
  • Incremento na taxa de mortalidade
  • Mais tempo na UTI
  • Aumento de infecção
  • Obstrução do sistema reticuloendotelial
  • Esteatose hepática
  • Estado catabólico e perda de massa corporal magra

Em uma tentativa de compensar o excesso de energia fornecida pelas calorias não nutricionais, alguns autores sugeriram que os volumes de NE ou PN podem ser reduzidos.

No entanto, isso pode resultar em fornecimento inadequado de proteína, especialmente se não for quantificado com precisão, particularmente porque a subalimentação já é prevalente em pacientes graves.

Desse modo, o uso de suplementos de proteína pode ser uma solução viável (1). De qualquer modo, o monitoramento de ingestão calórica ao longo da internação deve ser frequente (3).

As principais fontes de calorias não nutricionais

Entre as fontes mais comuns de calorias não nutricionais estão o propofol, as infusões de dextrose e a anticoagulação com citrato trissódico (1, 3). Estas são algumas das substâncias que contribuem para a oferta de calorias e que, frequentemente, são negligenciadas na dose total das necessidades nutricionais.

Propofol

O propofol, um agente sedativo com meia-vida curta, é frequentemente usado para induzir e manter a sedação em pacientes ventilados mecanicamente. É uma molécula lipossolúvel, disponível como uma emulsão lipídica composta principalmente de óleo de soja, portanto, com alto valor calórico (1).

Cada ml de propofol possui aproximadamente 1,1 kcal e 0,1 g de lipídio. Desse modo, um paciente recebendo 20 ml/h de propofol, ao final de 24 horas terá recebido 528 kcal e 48 g de lipídio (3).

Infusões de dextrose

As infusões de dextrose são soluções aquosas de dextrose monohidratada, comumente usadas para necessidades diárias de hidratação. Seu conteúdo de dextrose varia de 2,5% a 30%, dependendo da ingestão de dextrose desejada (1).

A dextrose contém 4 kcal/g, portanto, uma solução de dextrose a 5% contém 5 g por 100 mL, ou seja, 20 kcal por 100 mL (1).

Citrato trissódico

A anticoagulação regional com citrato, uma técnica frequentemente empregada em UTIs, envolve a administração de uma solução de citrato trissódico (1).

Comparada com a anticoagulação sistêmica com heparina, a anticoagulação regional com citrato prolonga a vida útil do filtro de diálise, tornando-a a técnica de escolha para pacientes de terapia intensiva com insuficiência renal aguda (1).

Como o citrato é metabolizado no ciclo de Krebs no nível mitocondrial, ele deve ser contabilizado como uma fonte de energia. Em uma pesquisa recente, a relação energética de citrato utilizada foi de 2,47 kcal/g (1).

Calorias não nutricionais: achados científicos

Em uma pesquisa com 147 pacientes de UTI com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) por COVID-19, foi analisada a contribuição das calorias não nutricionais provenientes de propofol e dextrose durante os 7 primeiros dias de internação. A terapia nutricional seguiu as diretrizes da ESPEN, com meta de 20 a 25 kcal/kg/dia (1).

Nos 3 primeiros dias, as CNNs representaram quase toda a ingestão calórica, diminuindo progressivamente para 47% no dia 4 e 19% no dia 7. As infusões de dextrose foram a principal fonte dessas calorias (1).

No 7º dia, 6.9% ficaram acima das metas calóricas, todos eles recebendo propofol (1). Pacientes que receberam propofol apresentaram maior ingestão calórica total na primeira semana (4.163 kcal vs. 2.096 kcal) e maior consumo de lipídios (197 g vs. 78 g), com o propofol contribuindo com 48% da ingestão de gordura. Apesar disso, a mortalidade foi menor.

Caso clínico

A seguir, confira um quadro que exemplifica o impacto das calorias não nutricionais na necessidade energética de um paciente internado.

Dados do paciente: homem, 65 anos, 70 kg, internado na UTI por sepse, com nutrição parenteral (NP) e ventilação mecânica. Fase aguda, com recomendação de 15 a 20 kcal/kg/dia (1050 a 1400 kcal/dia) de energia (6).

Contribuição do Propofol:
  • Infusão contínua: 20 mL/h
  • Volume diário: 20 mL/h × 24 h = 480 mL/dia
  • Calorias: 480 mL × 1,1 kcal/mL = 528 kcal/dia
Energia a ser fornecida pela terapia nutricional:

●       Mínima: 1050 kcal/dia – 528 kcal/dia = 522 kcal/dia.

●       Máxima: 1400 kcal/dia – 528 kcal/dia = 872 kcal/dia.

Portanto, um paciente em fase aguda sob uso de propofol (480 ml/dia) poderá receber terapia nutricional parenteral com aporte calórico entre 522 a 872 kcal/dia.

Vale ressaltar que, se o paciente estivesse sob uso de suplemento proteico para atingir as recomendações de 1.2 g/kg/dia (6), também seria necessário descontar as calorias fornecidas.

Em resumo, a contabilização das calorias não nutricionais é imprescindível, evitando o risco de overfeeding e suas consequências prejudiciais durante o período crítico.

 

 

 

Referências:

1 – Popoff B, Occhiali E, Demailly Z, Béduneau G, Carpentier D, Girault C, Gouin P, Grall M, Jolly G, Clavier T, Tamion F. Evaluation of non-nutritional calories in intensive care patients with acute respiratory distress syndrome due to coronavirus disease-19: a retrospective observational study. Clin Nutr Open Sci. 2024;53:44-56. ISSN 2667-2685.

2 – Singer P, Blaser AR, Berger MM, Alhazzani W, Calder PC, Casaer MP, et al. ESPEN guideline on clinical nutrition in the intensive care unit. Clin Nutr. 2019;38(1):48-79.

3 – Vieira AM, Castro MG. Calorias não nutricionais: o que fazer com elas? Estudo retrospectivo com pacientes COVID-19. BRASPEN J. 2023;36(4):411-414.

4 – Barr J, Hecht M, Flavin KE, Khorana A, Gould MK. Outcomes in critically ill patients before and after the implementation of an evidence-based nutritional management protocol. Chest. 2004;125:1446-1457.

5 – McClave SA, Taylor BE, Martindale RG, Warren MM, Johnson DR, Braunschweig C, et al. Guidelines for the provision and assessment of nutrition support therapy in the adult critically ill patient: Society of Critical Care Medicine (SCCM) and American Society for Parenteral and Enteral Nutrition (A.S.P.E.N.). JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2016;40:159-211.

6 – Castro MG, et al. Diretriz BRASPEN de Terapia Nutricional no Paciente Grave. BRASPEN J. 2023.

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