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O efeito dose-dependente do ômega-3 nos marcadores inflamatórios da Covid-19

A literatura especializada já demonstra que pacientes com quadros graves de Covid-19 geralmente apresentam um estado hiperinflamatório1. Com isso, muitos estudos se apoiam no racional que sugere como o uso de ômega-3 em emulsões lipídicas contribui para desfechos melhores entre aqueles acometidos gravemente pelo SARS-CoV-21.

Foi a partir disso que um ensaio clínico randomizado publicado em setembro de 2024 no periódico Nutrients buscou avaliar o papel de diferentes doses de ômega-3 em pacientes admitidos em unidade de terapia intensiva por conta das complicações dessa infecção viral.

Os resultados obtidos mostram que a modulação das doses desse nutriente lipídico tem o potencial de gerar benefícios para esses indivíduos1.

 

A tempestade de citocinas na Covid-19

Por diversas razões, pacientes em terapia intensiva podem apresentar respostas hiperinflamatórias. Exemplos disso são queimaduras e sepse2. Esse tipo de quadro, associado a um processo infeccioso, recebe o nome de Síndrome de Resposta Inflamatória Sistêmica (ou SIRS)2.

Essa manifestação, não raro, leva a um comprometimento do estado de saúde e a piores desfechos, incluindo aumento na mortalidade3.

Nesse cenário, pacientes com formas graves de Covid-19 geralmente também apresentam tal estado hiperinflamatório indesejado. Ele é acompanhado do que é conhecido como “tempestade de citocinas”4.

Conforme o nome sugere, ela é caracterizada por concentrações sanguíneas muito elevadas de múltiplas citocinas e quimiocinas, resultante da resposta à agressão ao organismo5.

Como parte da reação metabólica à inflamação, a tempestade de citocinas desencadeia a resposta imune inata. Isso inclui a produção de compostos proteicos relacionados à fase aguda da inflamação6.

Os hepatócitos são as principais células envolvidas nesse processo, junto de determinados macrófagos dedicados a conter os patógenos invasores e facilitar o reparo de tecidos lesionados7.

Já se sabe também que mediadores à base de lipídios, conhecidos sobretudo pelos agentes eicosanoides (como o eicosapentaenoico e docosahexaenoico) presentes no ômega-3 são componentes-chave dessa resposta imune inata8.

Assim sendo, foi proposto que o uso do ômega-3 poderia ajudar a conter o estado hiperinflamatório5. Tal alternativa foi levantada ainda no início da pandemia9. Pouco a pouco as investigações em torno do tema avançaram.

Com isso em mente, os autores do estudo destacado na introdução desenharam uma análise que permitiu comparar os benefícios das emulsões lipídicas com ômega-3 justamente em pacientes com Covid-19 em estado grave1.

 

 

A avaliação do efeito do ômega-3 em emulsões lipídicas

A prescrição da nutrição parenteral com ômega-3 para pacientes críticos não é uma novidade. O potencial anti-inflamatório desse composto já é bem conhecido10 e as vantagens do seu uso, também em nutrição parenteral, têm sido amplamente demonstradas.

O estudo apresentando nesse artigo traz o diferencial de ser um ensaio clínico publicado em 2024, em um modelo duplo cego randomizado objetivo de comparar os efeitos da suplementação de ômega-3 em emulsões lipídicas de nutrição parenteral em pacientes de UTIs com formas graves de Covid-19 (veja mais no infográfico)1.

Para isso, foi elaborada uma intervenção em que diferentes doses de ômega-3 (Omegaven) eram acrescidas a uma emulsão lipídica padrão enriquecida com óleo de peixe (Smoflipid)1.  

Como controle, outro grupo de pacientes receberia a abordagem nutricional padrão do hospital. Isso faria com que diferentes quantidades de ômega-3 fossem administradas1.

Os pacientes que usaram nutrição parenteral por mais de quatro dias eram elegíveis para serem incluídos nas análises. O estudo foi feito na Espanha e considerou no processo de recrutamento pacientes que:

  • Estivessem dentro da faixa etária de 18 anos ou mais;
  • Tivessem sido admitidos na terapia intensiva por conta de pneumonia desencadeada pela Covid-19;
  • Precisassem iniciar o protocolo de nutrição parenteral.

Os dados coletados durante o estudo

Entre abril de 2020 e junho de 2022, foram coletados os dados de 69 pacientes. Desses, 12 acabaram excluídos por não atender alguns dos critérios necessários (como o tempo mínimo recebendo nutrição parenteral).

 

Posteriormente, de acordo com o desenho do estudo, eles foram divididos em três grupos, nos quais1:

  • O primeiro tinha 17 pessoas e recebeu o protocolo de nutrição parenteral convencional do hospital, com diferentes bolsas multicompartimentadas e, assim, várias proporções de lipídios;
  • O segundo grupo tinha 23 pacientes e recebeu 0,1 g/kg/dia de suplemento a base de óleo de peixe acompanhada da emulsão lipídica com ômega-3 de acordo com as necessidades identificadas;
  • O terceiro grupo era composto por 17 pessoas e recebeu 0,2 g/kg/dia na forma de suplemento com óleo de peixe junto da emulsão com ômega-3, também com o objetivo de alcançar a quantidade de lipídio prescrita.

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Os desfechos clínicos analisados nos pacientes com Covid-19

Para avaliar a resposta inflamatória dos pacientes conforme cada abordagem, foi considerado como desfecho primário os níveis séricos de proteína C reativa e de interleucina 6 no primeiro, no quinto e no décimo dia após o início da terapia nutricional parenteral1.

Já os desfechos secundários consideram outros marcadores inflamatórios, indicadores de funcionalidade hepática, níveis de triglicerídeos, tempo de internação e mortalidade1.

A quantidade total de calorias e lipídios administrada, do dia 5 ao dia 10 de nutrição parenteral, não foi diferente entre os 3 grupos.

 

Os principais resultados obtidos nesse ensaio clínico

Em um primeiro momento, foi possível constatar uma redução importante na proteína C reativa e interleucina 6 no grupo que havia recebido a dose adicional menor de óleo de peixe (grupo II)1.

No entanto, o estudo não foi capaz de concluir que o aporte de óleo de peixe feito no terceiro grupo (0,2 g/kg/dia) apresentou esses mesmos resultados, demonstrando que os benefícios podem ser dose-dependentes1.

Tal fenômeno pode ser resultado de uma série de fatores que interagem de maneira bastante complexa. No estudo em questão, isso inclui, entre outros pontos, o momento em que a administração da nutrição parenteral se deu, sugerindo diferentes tempos para resposta imune, além da amostra pequena utilizada no estudo1.

Com relação à mortalidade registrada, os autores apontam que não houve diferença significativa entre nenhum grupo. Porém, pacientes com uma dose maior de óleo de peixe (grupo III) tiveram menor tempo de hospitalização, inclusive em terapia intensiva1.

Em resumo, o estudo mostra que o ômega-3 em emulsões lipídicas e a suplementação com compostos com óleo de peixe parecem ter influência positiva na reação inflamatória desencadeada pela Covid-19. No entanto, a investigação sobre o tema precisa ser expandida para que haja ajustes na dose e momento de administração. O tempo da intervenção é crucial quando se fala em uma situação dinâmica e complexa como a tempestade de citocinas.

 

Agora saiba mais sobre o papel do óleo de peixe na terapia nutricional do paciente crítico.

 

Referências:

  1. Berlana D, Albertos R, Barquin R, Pau-Parra A, Díez-Poch M, López-Martínez R, et al. Impact of Omega-3 Fatty Acid Supplementation in Parenteral Nutrition on Inflammatory Markers and Clinical Outcomes in Critically Ill COVID-19 Patients: A Randomized Controlled Trial. Nutrients. 2024;16(18):3046. Disponível em: <https://www.mdpi.com/2072-6643/16/18/3046> Acesso em 06 de dezembro de 2024.
  2. Bone RC, Balk RA, Cerra FB, et al. Definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. The ACCP/SCCM Consensus Conference Committee. American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine. Chest. 1992;101:1644-1655. doi:10.1378/chest.101.6.1644. Disponível em: <https://journal.chestnet.org/article/S0012-3692(16)38415-X/abstract> Acesso em 11 de novembro de 2024
  3. Rangel-Frausto MS, Pittet D, Costigan M, Hwang T, Davis CS, Wenzel RP. The natural history of the systemic inflammatory response syndrome (SIRS). JAMA. 1995;273:117-123. doi:10.1001/jama.1995.03520260039030. Disponível em: <https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/vol/273/pg/117> Acesso em 11 de novembro de 2024
  4. Karki R, Kannenganti TD. Innate immunity, cytokine storm, and inflammatory cell death in COVID-19. J Transl Med. 2022;20:542. Disponível em: <https://translational-medicine.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12967-022-03767-z> Acesso em 11 de novembro de 2024
  5. Driscoll DF, Bistrian BR. Cytokine storm associated with severe COVID-19 infections: The potential mitigating role of omega-3 fatty acid triglycerides in the ICU. FASEB J. 2023;37(8). Disponível em: <https://faseb.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1096/fj.202300396R> Acesso em 06 de dezembro de 2024
  6. Bistrian BR. Acute phase proteins and the systemic inflammatory response. Crit Care Med. 1999;27:452-453. Disponível em: <https://journals.lww.com/ccmjournal/citation/1999/03000/acute_phase_proteins_and_the_systemic_inflammatory.4.aspx> Acesso em 11 de novembro de 2024
  7. Mantovani A, Garlanda C. Humoral innate immunity and acute phase proteins. N Engl J Med. 2023;388:439-452. doi:10.1056/NEJMra2206346. Disponível em: <https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMra2206346?url_ver=Z39.88-2003&rfr_id=ori:rid:crossref.org&rfr_dat=cr_pub%20%200pubmed> Acesso em 06 de dezembro de 2024
  8. Serhan CN, Chiang N, Van Dyke T. Resolving inflammation: dual anti-inflammatory and pro-resolution lipid mediators. Nat Rev Immunol. 2008;8:349-361. doi:10.1038/nri2294. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/nri2294> Acesso em 11 de novembro de 2024
  9. Bistrian BR. Parenteral fish-oil emulsions in critically ill COVID-19 patients. J Parenter Enteral Nutr. 2020;44:1168. doi:10.1002/jpen.1871. Disponível em: <https://aspenjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/jpen.1871> Acesso em 06 de dezembro de 2024
  10. Calder PC, Adolph M, Deutz NE, Grau T, Innes JK, Klek S, et al. Lipids in the Intensive Care Unit: Recommendations from the ESPEN Expert Group. Clin Nutr. 2018;37:1-18. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0261561417303151> Acesso em 11 de novembro de 2024