As principais orientações dos guidelines sobre síndrome do intestino curto
Os guidelines ou diretrizes a respeito do manejo da síndrome do intestino curto (SIC) integram o documento que aborda as recomendações, baseadas em evidências, para pacientes com falência intestinal crônica. A composição do texto é resultado do trabalho de especialistas consultados pela Espen, a European Society for Clinical Nutrition and Metabolism.
A versão anterior dessa diretriz havia sido publicada em 2016 e uma nova versão foi atualizada em 2023. Por isso, vale sempre entender melhor a estrutura das recomendações e atualizar-se com o que elas trazem sobre o acompanhamento da SIC, uma condição altamente complexa.
A estrutura dos guidelines sobre síndrome do intestino curto
Para elaborar o documento em questão, o grupo de trabalho foi composto por gastroenterologistas, cirurgiões, médicos, anestesistas, nutricionistas e associações de representantes de pacientes1.
Como a diretriz aborda questões envolvendo o acompanhamento de indivíduos com falência intestinal, o primeiro passo foi definir os capítulos que seriam abordados nessa atualização. Ao todo, foram 19 temas, incluindo nisso a síndrome do intestino curto1.
Em seguida, foi feita uma pesquisa na literatura, tomando como partida a versão anterior do guideline (de 2016) e a atualização sobre nutrição parenteral domiciliar (de 2020).
A partir disso, as definições e recomendações foram redigidas, considerando os diferentes graus de evidência disponíveis. Em resumo, ensaios clínicos randomizados e metanálises conferem maior força à conclusão, enquanto a opinião do especialista deixa menos intensa a solidez de uma afirmação1.
Assim, as recomendações foram divididas nas seguintes categorias: (A/B/0/GPP). A letra A representa um grau mais sólido de certeza sobre a evidência (baseada, por exemplo, em, pelo menos, uma metanálise, revisão sistemática, ou ensaio clínico randomizado) e o GPP sugere recomendações de boas práticas (baseadas na experiência clínica dos especialistas/autores da diretriz)1.
Por fim, as recomendações são votadas e aquelas com mais de 90% de concordância entre os especialistas recebem a confirmação de “forte consenso”. Aquelas que não alcançaram tal patamar foram revisadas1.
Vamos conhecer os principais pontos abordados sobre o tema
Nos tópicos abaixo, destacamos o que de mais importante aparece no capítulo dedicado à síndrome do intestino curto.
Definição da síndrome do intestino curto
Com um forte consenso entre os especialistas, a SIC em adultos é definida como a característica clínica associada a um intestino delgado residual, contínuo, menor que 200 cm1. Tal alteração pode ser resultado de ressecções cirúrgicas extensas ou doenças congênitas do intestino delgado2,3,4. Essa condição se manifesta através de3,4:
- Má absorção de nutrientes;
- Diarreia;
- Fezes gordurosas;
- Desnutrição;
- Desidratação.
Por outro lado, a presença de características clínicas de SIC, ainda que com um comprimento residual do intestino delgado superior a 200 cm, é definida como “síndrome do intestino curto funcional”1. Cabe ressaltar que a síndrome do intestino curto é o principal componente da falência intestinal crônica em adultos5.
Recomendações nutricionais para esses pacientes
As guidelines sobre síndrome do intestino curto afirmam que esses pacientes devem receber aconselhamento nutricional de um nutricionista para orientar medidas objetivas de equilíbrio metabólico e acompanhar a adesão a tais orientações1. A partir disso, é preciso considerar que:
- A dieta de pacientes com SIC, com cólon preservado, pode ser rica em carboidratos complexos e pobre em mono e dissacarídeos e em gordura (grau 0, forte consenso para recomendação);
- A dieta de pacientes com SIC, com cólon preservado, deve ter um alto teor de triglicérides de cadeia média (TCM), já que isso é capaz de conferir um benefício na absorção geral de energia em comparação com uma dieta contendo triglicérides de cadeia longa (grau B, forte consenso de recomendação);
- A dieta de pacientes com SIC, sem cólon preservado, pode ter qualquer relação gordura/carboidrato, porém deve ter um baixo teor de mono e dissacarídeos (grau 0, forte consenso para recomendação);
- Pacientes com SIC que consomem uma dieta com baixo teor de gordura ou onde os triglicérides de cadeia longa foram substituídos por triglicérides de cadeia média devem ser monitorados quanto à deficiência de ácidos graxos essenciais e vitaminas lipossolúveis (grau GPP, forte consenso de recomendação);
- Fibras solúveis (como a pectina) não podem ser adicionadas à dieta desses pacientes com o intuito de melhorar a absorção intestinal geral (grau 0, forte consenso de recomendação);
- A lactose não deve ser excluída, a menos que haja confirmação de intolerância ou uma associação entre o consumo desse elemento e diarreia ou débito elevado do estoma (grau 0, forte consenso para recomendação);
- Suplementos nutricionais orais isotônicos podem ser adicionados à dieta de pacientes em risco de desnutrição (grau GPP, forte consenso de recomendação).
De modo geral, as indicações nutricionais já anteriormente destacadas nas diretrizes de 2016 foram mantidas pois, para esse tópico, nenhum novo dado foi publicado1.
Algumas recomendações foram reformuladas e reclassificadas e novos capítulos foram incluídos. Esses novos conteúdos abordam questões relacionados a definições, orientações sobre centros de tratamento de falência intestinal, fístulas enterocutânea, custos e cuidados com pacientes com falência intestinal crônica, além de falência intestinal durante a gravidez.
Uso da nutrição parenteral/enteral
A gravidade da falência intestinal crônica deve ser classificada conforme as categorias de tipo e volume da suplementação intravenosa exigida pelos pacientes. Logo, quadros que exigem apenas fluidos e eletrólitos são menos grave que aqueles que demandam nutrição parenteral com micronutrientes na fórmula1.
Nesse contexto, nutrição parenteral domiciliar deve ser prescrita como terapia primária para pacientes com falência intestinal transitória reversível ou permanente. Ela deve garatir um apoio nutricional seguro, eficaz e apropriado após a alta do hospital1.
Além disso, torna-se imprescindível o acompanhamento profissional constante desses pacientes em domicílio, visto que doenças subjacentes à insuficiência intestinal podem evoluir em percentual significativo.
Entre os agravos mais comuns estão quadros de SIC, isquemia mesentérica, doença de Crohn e complicações em função de fístulas intestinais ou obstrução mecânica por enterite após radiação.
Contudo, os pacientes com SIC, ao longo do tempo, podem progredir do suporte parenteral total em direção à alimentação enteral ou oral conforme tolerado1.
Nesse cenário, a nutrição enteral, em combinação com alimentação oral, costuma ser prescrita quando o benefício esperado permite a retirada da nutrição parenteral, muitas vezes acontecendo após um período de dependência exclusiva da terapia endovenosa1.
Em paralelo, o objetivo da nutrição enteral contínua deve ser proporcionar uma exposição máxima da área de superfície intestinal aos nutrientes, enquanto estimula as secreções gastrointestinais e hormonais endógenas1. Elas são importantes para o avanço da adaptação intestinal.
Saiba mais: Entenda as diferenças entre nutrição parenteral parcial ou total
Logo, profissionais de saúde envolvidos no acompanhamento do pacientes com síndrome do intestino curto devem estar atentos ao que dizem essas orientações com relação à terapia nutricional e sua composição mais adequada. Isso permite a adoção das melhores condutas possíveis dentro das evidências disponíveis.
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Referências:
- Pironi L, Arends J, Baxter J, Bozzetti F, Pelaez RB, Cuerda C, et al. ESPEN guideline on chronic intestinal failure in adults–Update 2023. Clin Nutr. 2023;42(10):1940-2021. Disponível em: <https://www.espen.org/files/ESPEN-Guidelines/ESPEN_guideline_on_chronic_intestinal_failure_in_adults.pdf> Acesso em 13 de agosto de 2024.
- Pironi L, Arends J, Baxter J, Bozzetti F, Pelaez RB, Cuerda C, et al. ESPEN endorsed recommendations. Definition and classification of intestinal failure in adults. Clin Nutr. 2015;34:171e80. Disponível em: <https://www.clinicalnutritionjournal.com/article/S0261-5614(14)00234-9/fulltext> Acesso em 13 de agosto de 2024.
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- Pironi L, Konrad D, Brandt C, Joly F, Wanten G, Agostini F, et al. Clinical classification of adult patients with chronic intestinal failure due to benign disease: an international multicenter cross-sectional survey. Clin Nutr. 2018 Apr;37(2):728e38. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0261561417301528> Acesso em 30 de julho de 2024.
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